Meditação sobre a técnica

"Os antigos dividiam a vida em duas zonas: uma, que chamavam de otium, o ócio, que não é a negação do fazer, mas é dedicar-se a ser o humano do homem, que eles interpretavam como autoridade, organização, trato social, ciências, artes. A outra zona, em que se dava pleno esforço para satisfazer as necessidades elementares, isto é, tudo o que tornava possível aquele otium, chamavam-na de nec-otium, assinalando muito bem o caráter negativo que tem para o homem."

 

Ortega y Gasset

O que quero dizer é o seguinte

A ausência paterna faz de políticos populistas executivos paternalistas. Clinton, Lula, …Barack Obama. Este será, do ponto de vista econômico, tão racional quanto aqueles – e tão bem-sucedido em sua irresponsável ausência de culpas quanto ambos. O novo discurso demagógico extraordinário será só velhas ações ordinárias de uma mesma e imensa sociedade anônima. A diferença particular é que esta tragédia devida a causas que se assemelham resultará em inconseqüências universais.

Sobre a Lei Seca

A estratégia não é nova. Pelo contrário, pode-se dizer que é já do entreguerras, com todos os posteriores aprimoramentos e sofisticações os mais esdrúxulos e pedantes que lhe devotaram frankfurtianos et caterva. Pensaram eles: se não podemos vencê-los, corrompamo-los. É, pois, sobre corrupção dos princípios que venho falar.

 

Em diferentes momentos foi aplicada; bem sucedida nuns, nem tanto noutros, mas de alguma forma sempre vitoriosa, dada sua perpetuação e seu poder quase hipnótico.

 

É do uso, ou mau uso, dos instrumentos democráticos que falo. Usar a democracia para acabar com o Estado Liberal foi e, infelizmente, continua sendo a estratégia mais bem sucedida – para os padrões deles – de imposição do único totalitarismo que, mesmo titular da história mais nefasta, por paradoxal que seja, chegou vivo e bem disposto no Ocidente do século XXI, a ponto de não só ousar, mas se orgulhar de dizer seu nome, o que me dispensa de fazê-lo.

 

Foi assim no mal sucedido – para eles – referendo das armas; foi assim na proibição dos bingos; foi, agora há pouco, na bem sucedida instrumentalização de homens desesperados que levou à permissão do assassínio de homens indefesos, pelo Supremo Tribunal Federal. É nas famigeradas leis “anti-homofóbicas”; está sendo no racialismo oficial e na assim chamada lei seca.

 

Toda essa ordenação legiferante muito se assemelha em princípio. Em princípio, o que parece é ordenação e não deixa de sê-lo: toda a legislação acima citada veio à luz como se do espírito das luzes nascesse, e se ordena para, pela corrupção dos princípios, materializar o reinado das trevas.

 

Olhando para o passado com algum cuidado, não se pode dizer que o Brasil não estivesse preparado para isso. O Brasil lhes pedia isso. Sendo a República instituída a partir de um golpe de estado, às forças armadas sobrou o antigo papel de poder moderador, como retrata João Camilo de Oliveira Torres em Interpretação da Realidade Brasileira. Tornando-se essas dependentes do Executivo, este lhes usurpou seu papel, tornando-se os presidentes da República desde então nossos “Defensores Perpétuos” – não é de admirar que das vezes nas quais o Executivo se mostrou “forte” tenha granjeado tão pronta admiração.

 

E é esta submissão a um Executivo “forte” que está a corromper a nossa democracia. Por paradoxal que outra vez pareça, sempre que consultado, não deixa o povo de se mostrar o último guardião da liberdade, como no caso do referendo, pois foi o Estado que criou o povo – socorro-me outra vez de Oliveira Torres –, mas o Estado que o criou foi o Estado Liberal.

 

A lei seca é apenas o mais recente e não o último dos instrumentos que os novos bárbaros nos impõem para alcançar seus fins últimos, quais sejam, a deterioração da liberdade sob a implantação de uma falsa fraternidade à Rousseau. Fraternidade disfarçada, pois, não sendo esta possível em uma democracia continental, fatalmente o remédio para seus próprios males já esteja dado: mais fraternidade – a dispersão do Estado-nação em uma comunidade de nações.

 

O problema é que, sendo o povo fruto do Estado, e estando este a corromper-se, aquele aos poucos lhe queira seguir os passos de pai, “chegar à idade da razão”, e não mais lhe oferecer uma sadia resistência juvenil. Não tendo em quem se espelhar, espelha-se nos mais próximos e péssimos exemplos paternos.

 

Digo isto porque a tal lei seca e aquelas outras corrompem princípios: se se obriga o cidadão a produzir provas contra si, porque não lhe pedir que às fartas as produza contra outrem? Por que não lhe obrigar a produzir, então, pequenas provas de sangue – do seu e do alheio? Tudo muito lógico, tudo muito natural, ou tudo um tanto louco? Não se chamou loucura à ciência que, à sua época – nem tanto tempo assim –, foi permitida reproduzir-nos por meios tortos e que hoje, pelas artes que se viu, nos permite nos destruirmos.

 

Instrumentalizaram-nos para que, instrumentos que sejamos, esqueça-mo-nos de nós mesmos. Que seja, sejamos os mesmos, para não nos tornarmos uma só e mesma coisa.

O melhor entrevistado

 

Está em viagem, mas responderá à entrevista quando chegar a casa, em Lisboa – avisa. Menos de duas horas depois, é ele quem afirma que as respostas não são muito inspiradoras. “É o que dá a pressão”, desculpa-se. João Pereira Coutinho, portuense e mordaz colunista do Expresso e da Folha de S. Paulo, 30 anos, confessa-se por e-mail.

 
É verdade que comprou o carro da manequim Mariza Cruz só por ser dela?
Mentira. Comprei o carro da Marisa Cruz porque estava à espera que ela viesse como brinde. Fui roubado.

Com raras excepções, porque é que só escreve bem do Brasil na ‘Folha de S. Paulo’ e mal de Portugal no ‘Expresso’?
Porque a ‘Folha’ paga melhor. Quando o ‘Expresso’ subir a parada, começo a elogiar Portugal e os portugueses semana sim, semana sim.

É melhor tratado lá, ou cá desde que começou a escrever para lá?
Sou tratado da mesma forma. Com a única excepção de que os insultos, do lado de lá, vêm com sotaque. Os elogios também.
 
Portugal é um país de deslumbrados?
Já vi pior. O Zimbabué, por exemplo.

Escrever dá-lhe mais prazer do que quando tocava piano nos bares?
A escrita não é uma questão de prazer; é uma questão de trabalho. O mesmo com o piano e os bares.

O processo que Manuel Seabra, vereador da Câmara de Matosinhos, moveu contra si quando tinha pouco mais de 20 anos, chateou-o ou deixou-o vaidoso?
Nem uma coisa nem outra. Mas sempre disse que estas coisas deviam ser tratadas em duelo.

Era capaz de viver no Porto outra vez?
Eu ainda vivo parte dos meus dias em Leça da Palmeira. A melhor parte, aliás.

A sua insolência nas crónicas é postiça ou é sempre assim?
Totalmente postiça. Como pessoa, sou uma doçura sem igual.

Vê-se como uma espécie de gato fedorento em versão intelectual?
Os “Gatos Fedorentos” são quatro intelectuais. Quando muito, sou uma versão fedorenta deles.

Que cronista gostaria de abolir da imprensa portuguesa?
O Alberto Gonçalves, do DN e da Sábado. Demasiado bom para ser verdade.

Nunca cita o seu primeiro livro nos dados biográficos. Porquê?
Problemas de memória.

Fala sozinho com frequência?
Sempre que posso. Mas nem sempre estou disposto a ouvir-me, muito menos a responder-me.

Não falar/não ouvir é mais nefasto na vida pessoal ou na esfera política?
Depende do interlocutor.

É sensível à crise dos 30?
Não, porque a minha precocidade obrigou-me a vivê-la quando tinha 20. Agora estou na crise dos 40. Não é mau de todo.

Imagino-o com gostos de adulto desde pequeno: charutos, whisky, hotéis, aviões, mulheres mais velhas. Quase como se tivesse passado a infância toda só à espera de crescer. Foi assim?
Sem dúvida. Aliás, ainda continuo à espera.

Alguma vez foi a um festival de Verão?
Uma vez, por engano. Temi que me cozinhassem.

Era capaz de ir ao cinema com Paulo Portas?
Sim, mas só se ele pagasse as pipocas.

“Treinadores apaixonados na cama tendem a incutir nos atletas uma vontade orgásmica de marcar”. Scolari parece-lhe apaixonado?
Nem por isso. Regular. Daí os resultados. Regulares.

Que biografia portuguesa gostaria que fosse publicada neste momento?
A minha. Mas escrita por um mentiroso profissional.

Lula é um coquetel psicanalítico. E entende de Freud: o Godoy

 

Do blog do Reinaldo Azevedo

 

De um certo Freud, o Godoy, Lula entende. Do outro, o Sigmund, ele nada sabe como analista, mas ele próprio e seu governo são, sem dúvida, casos que podem ser mais bem-compreendidos à luz da psicanálise.

 

Comecemos pelo óbvio, não? A “mãe” do PAC, Dilma Rousseff, chama Roberto Teixeira, o primeiro-compadre — figura mais constante da vida de Lula depois de Dona Marisa — de “Papai”. O próprio Babalorixá de Banânia costuma se referir aos brasileiros como se fôssemos todos seus filhos. Vocês se lembram: sempre que ele quer nos dar algum conselho ou dizer como devemos agir, toma como exemplo a forma como educou as suas crias. Huuummm… Muita gente gostaria de estar hoje no lugar de Lulinha, não é? De monitor de zebra a milionário, foi um pulo — um pulinho.

Nestas terras tropicais, as aristocracias antigas e novas desafiam Freud — o Sigmund. Que mané matar o pai, que nada! “Eles” não têm por aqui dessas frescuras. Vocês sabem: é aquele tal “complexo de Édipo”, né? O herói (depois anti-herói) matou o pai, Laio, para desposar a mãe, Jocasta. A “morte” simbólica do pai é, sendo um pouco ligeiro, o momento da passagem para a vida adulta.

O Brasil tem pororoca. O Brasil tem jabuticaba. O Brasil tem Lei de Falências interpretada como Lei do Calote. E tem um entendimento particular do Complexo de Édipo. Aqui, Édipo e Laio fundam uma sociedade, e o filho se agarra às benesses que lhe arruma o pai — o que depois deixará como herança a seus sucessores.

Esse negócio de ministra ser mãe do PAC (e chamar advogado lobista de “papai”) e de Lula nos comparar a seus filhos cria, é óbvio, uma sociedade de menores de idade, de seres moralmente inimputáveis. Na esfera econômica, a pior manifestação disso é haver uma massa de gente que vive da caridade oficial.

Isso nem Freud explica — ou, se explica, faz é um crônica de nossas misérias.

 

Estupidez
Quanto ao ataque bucéfalo que Lula faz às oposições, dizer o quê? Ele até hoje não entendeu como funciona a democracia. A principal característica deste regime não é a imposição da vontade da maioria, mas a proteção à liberdade da minoria.

O Apedeuta transforma a oposição em sabotagem.

Chá das Cinco

 

a linguagem muda das coisas (caras)

Li esses dias uma daquelas filósofas do GNT dizendo na Internet que é papel do intelectual denunciar a sede de luxo. Eu também acho que é papel do intelectual denunciar a sede de luxo. Contanto que o papel fique só para ele. Intelectuais sempre vêm com esse papo de que a gente não deve ter mais do que precisa. Mas o que é "precisar" mesmo? É uma idéia bem simplória, bem pouco "intelectual", essa de que as coisas só têm uma função: um sapato é para pisar, um chapéu para proteger do Sol, portanto a gente só precisa de um de cada. Qualquer perua – ah, essas estetas involuntárias! – sabe que sapatos e brincos e chapéus também falam a linguagem muda das coisas e que um tom de marrom na bolsa pode arruinar um conjunto. Por isso, quando perguntam se a primeira-dama das Filipinas precisava mesmo de 500 pares de sapato, acho que devemos levar em consideração sua alma de artista ou de perua. Talvez, como Turner para pintar um pôr-do-sol, ela precise de 500 cores na paleta. Todas Manolo Blahnik, claro.

Rodrigo de Lemos

 

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onde está o eliot?

Nunca consegui explicar direito de onde vinha esse desgosto quase fisiológico que sinto ao ler um crítico de arte ou muito sociológico ou muito psicanalista ou muito desconstrucionista, e minha simpatia distante por coisas meio fora de moda como New Criticism e até certo ponto Estruturalismo. Além dos argumentos mais ou menos óbvios (de que saber como Thackeray organizou "Vanity Fair" ensina alguma coisa a quem lê e a quem escreve sobre como estruturar romances, enquanto dizer que Rebecca Sharp é uma manifestação do Eterno Feminino, convenhamos, não ajuda muito), havia alguma coisa de mais irracional nesse desgosto. Mas ontem, depois da curta anamnese que sempre faço tomando Toddyinho, me veio o motivo, que chamarei muito psicanalisticamente de Cena Primordial.

Eu tinha 18 anos. Estava no Museu do Prado, eu e um monte de turistas que tiravam fotos com flash e mascavam chicletes barulhentos; na nossa frente, "O Jardim das Delícias". Foi um daqueles momentos em que entendi claramente o que é ver um quadro: apesar dos flashes e dos chicletes à minha volta, deixar o olho passear sobre a tela, gostando de um cena aqui, passando por cima de outra menos interessante logo depois, quase nunca me perguntando "Por quê? Por quê?", sempre prestando muita atenção nos "como": como Bosch tinha organizado a cenas, como o quadro agia sobre o meu olho. Mas não demorou muito para eu perceber uma perturbação ao meu redor. A alguns passos de mim, uma mulher com cara de mãe, sotaque de nova-iorquina, passou empurrando quem encontrava pelo caminho, falando alto até chegar bem na frente do quadro. E aí ela explicou para o marido – meio bolha, pelo que percebi – o porque daquele alvoroço: ela tinha lido numa revista que, em meio às figuras do "Jardim das Delícias", havia um diabo se masturbando, e que sem achar o diabo se masturbando não havia como entender "O Jardim das Delícias". E foi isso que ela fez durante os quase dez minutos que passou em frente ao quadro: procurar o tal diabo onanista como quem procura "Onde está o Wally?".

É isso que acho que um crítico ou muito sociológico ou muito psicanalista ou muito desconstrucionista faz: procurar o Wally. De um jeito muito sofisticado, cheio de método e de justificativas teóricas e de termos de mais de quatro sílabas, mas ainda assim é isso, procurar o Wally. Alguns até juram que estão prestando muita atenção no "Como?", que eles chamam de retórica ou aspectos formais ou qualquer outro nome deses, mas eles prestam atenção no "Como?" só para no fim achar o Wally. Não estou dizendo de antemão que num poema do Eliot eles não vão achar o Wally dando um cascudo num judeu; que numa pintura do Rubens o Wally não vai estar repetindo infinitamente o objeto de desejo por razões freudianas. Pode ser. Mas escrever um trabalho exclusivamente sobre isso não serve de nada se não responder a única pergunta que me interessa na crítica: qual o valor que aquela obra tem para aquele crítico? Ficar procurando o Wally sem falar na musicalidade do Eliot, no movimento em Rubens, não responde a essa pergunta. A não ser que o crítico pense que "Wasteland" vale menos porque tem traços de anti-semitismo, o que o levaria também a desvalorizar não sei quantas obras do passado (freqüentemente racistas ou elitistas ou xenófobas ou qualquer outro pecado do tipo.)

Sei que em faculdades a minha posição é chamada com desprezo de diletantismo elegante. Não tenho problema nem com diletantismo e, ao contrário dos professores universitários, nem com elegância. Mas é uma simplificação. Não acho que métodos mais rígidos sejam inúteis. Só que eu não excluiria deles um certo diletantismo. Apagar todo diletantismo da crítica significa apagar qualquer traço do prazer irresponsável que senti na Cena Primordial, quase nunca perguntando "Por quê? Por quê?", sempre prestando muita atenção no "Como". Talvez venha daí minha simpatia por métodos formalistas meio fora de moda. O meu crítico ideal leria de perto como um New Critic, e entenderia muito sobre estilo e foco narrativo e organização estrutural como um Estruturalista clássico, mas usaria todo esse maquinário meio feio, meio cinzento para responder uma única questão: de onde vem o prazer ou o desprazer que ele sente? E ele seria um diletante não só porque o prazer e o desprazer seriam a sua maior preocupação, mas também porque ele confiaria mais na inteligência do que em métodos. Por isso, nada impediria que às vezes ele procurasse o Wally se sentisse necessidade. O que a esperteza dele não permitiria é passar uma tarde inteira no Prado só para isso, ainda mais com visto de turista.

Posted by Rodrigo de Lemos at maio 9, 2008 12:22 PM