Em diferentes momentos foi aplicada; bem sucedida nuns, nem tanto noutros, mas de alguma forma sempre vitoriosa, dada sua perpetuação e seu poder quase hipnótico.
É do uso, ou mau uso, dos instrumentos democráticos que falo. Usar a democracia para acabar com o Estado Liberal foi e, infelizmente, continua sendo a estratégia mais bem sucedida – para os padrões deles – de imposição do único totalitarismo que, mesmo titular da história mais nefasta, por paradoxal que seja, chegou vivo e bem disposto no Ocidente do século XXI, a ponto de não só ousar, mas se orgulhar de dizer seu nome, o que me dispensa de fazê-lo.
Foi assim no mal sucedido – para eles – referendo das armas; foi assim na proibição dos bingos; foi, agora há pouco, na bem sucedida instrumentalização de homens desesperados que levou à permissão do assassínio de homens indefesos, pelo Supremo Tribunal Federal. É nas famigeradas leis “anti-homofóbicas”; está sendo no racialismo oficial e na assim chamada lei seca.
Toda essa ordenação legiferante muito se assemelha em princípio. Em princípio, o que parece é ordenação e não deixa de sê-lo: toda a legislação acima citada veio à luz como se do espírito das luzes nascesse, e se ordena para, pela corrupção dos princípios, materializar o reinado das trevas.
Olhando para o passado com algum cuidado, não se pode dizer que o Brasil não estivesse preparado para isso. O Brasil lhes pedia isso. Sendo a República instituída a partir de um golpe de estado, às forças armadas sobrou o antigo papel de poder moderador, como retrata João Camilo de Oliveira Torres em Interpretação da Realidade Brasileira. Tornando-se essas dependentes do Executivo, este lhes usurpou seu papel, tornando-se os presidentes da República desde então nossos “Defensores Perpétuos” – não é de admirar que das vezes nas quais o Executivo se mostrou “forte” tenha granjeado tão pronta admiração.
E é esta submissão a um Executivo “forte” que está a corromper a nossa democracia. Por paradoxal que outra vez pareça, sempre que consultado, não deixa o povo de se mostrar o último guardião da liberdade, como no caso do referendo, pois foi o Estado que criou o povo – socorro-me outra vez de Oliveira Torres –, mas o Estado que o criou foi o Estado Liberal.
A lei seca é apenas o mais recente e não o último dos instrumentos que os novos bárbaros nos impõem para alcançar seus fins últimos, quais sejam, a deterioração da liberdade sob a implantação de uma falsa fraternidade à Rousseau. Fraternidade disfarçada, pois, não sendo esta possível em uma democracia continental, fatalmente o remédio para seus próprios males já esteja dado: mais fraternidade – a dispersão do Estado-nação em uma comunidade de nações.
O problema é que, sendo o povo fruto do Estado, e estando este a corromper-se, aquele aos poucos lhe queira seguir os passos de pai, “chegar à idade da razão”, e não mais lhe oferecer uma sadia resistência juvenil. Não tendo em quem se espelhar, espelha-se nos mais próximos e péssimos exemplos paternos.
Digo isto porque a tal lei seca e aquelas outras corrompem princípios: se se obriga o cidadão a produzir provas contra si, porque não lhe pedir que às fartas as produza contra outrem? Por que não lhe obrigar a produzir, então, pequenas provas de sangue – do seu e do alheio? Tudo muito lógico, tudo muito natural, ou tudo um tanto louco? Não se chamou loucura à ciência que, à sua época – nem tanto tempo assim –, foi permitida reproduzir-nos por meios tortos e que hoje, pelas artes que se viu, nos permite nos destruirmos.
Instrumentalizaram-nos para que, instrumentos que sejamos, esqueça-mo-nos de nós mesmos. Que seja, sejamos os mesmos, para não nos tornarmos uma só e mesma coisa.